Hoje não levo óculos de Sol. Nem de Sol, nem de Lua, nem de coisa nenhuma. Nem óculos redondos, ou quadrados, ou de cores. Não os levo porque não quero guardá-los. Porque guardá-los implica estragá-los, ou mesmo perdê-los.
Não os quero porque quero sentir tudo. Quero que os raios me queimem, que a areia me cegue, que os olhos matem outros ao cruzar-se. E não quero ter marcas, isso não. Quero ser permeável, quero desbotar, quero contaminar. Quero sentir quem passa, quero marcar quem toco. Porque as roupas com cor diferente se mancham, porque os alimentos trocam de sabor quando se tocam, porque o oxigénio entra em mim, e eu entro na terra. Porque os dedos se entrelaçam, os atacadores se amarram, e a chama arde o papel. Porque tu entras em mim, e porque eu entro em ti: pela boca, pelo sexo, pelos sentidos. Porque tu e todas as coisas se encontram aqui, e me invadem. O vento sopra, os cabelos tocam-me a face, o lenço acaricia os meus lábios. Porque as vozes ao fundo se fazem ouvir, e o cheiro do fim do Verão se faz sentir.
Eu não quero óculos porque não quero paredes. Quero estar aberta, dar de mim, receber de ti. Hoje não levo óculos porque quero sentir-me queimada, e renascer depois disso.
Um comentário:
Fantástico!
"Eu não quero óculos porque não quero paredes", adorei esta imagem, o momento destas palavras.
Gostei muito do desdobramento, novamente, dos conceitos e sobretudo da noção de liberdade, sem elásticos, sem [falsas]moralidades, da abertura, não da mente, mas da vontade. Vontade do abraço, da envolvência concomitante dos sentidos, do mundo - do teu e do que queres absorver [e do que já absorveste]com todos eles.
Gostei porque o texto está vivo, está em viagem, remexe, anda para trás e para a frente, procura, encontra, descobre, ensina, aprende. Gostei porque não é estanque [tal como nós]e porque está bem escrito, porque é sincero [ou parece] e porque é bonita essa tua vontade de [querer] viver! =)
Beijo*
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